Visões da Índia por Denise Amador

Denise Amador, representante do Mutirão Agroflorestal esteve na Índia participando de diversos eventos ligados à agrobiodiversidade, mulheres, sementes e educação.

O primeiro evento ocorreu na Fazenda Navdania, criada e coordenada pela ativista Vandana Shiva, situada no estado de Uttarakhand, região nordeste da Índia, onde ficamos por 10 dias. A Fazenda Navdania é um Centro de conservação da Agrobiodiversidade com conexão a várias comunidades rurais do país que plantam e conservam sementes de variedades regionais antigas de alimentos. As mulheres são as principais guardiãs das sementes e manejam variedades de arroz, milho, grão de bico, amaranto, lentilha, feijões, “millets” e outras. A Navdania foi criada originalmente para evitar o desaparecimento da diversidade de sementes da Índia e para favorecer um mercado para agricultores tradicionais. No começo do novo milênio, Navdanya se tornou também um centro de formação e educação.

Nos dois primeiros dias aconteceu o Festival Shakti “Diverse women for diversity”, com o objetivo de celebrar o papel das mulheres na conservação de variedades de plantas agrícolas e na segurança alimentar. Aproximadamente 200 mulheres de diversas regiões da Índia foram participar deste evento. A tarde do primeiro dia foi destinada à preparação de pratos típicos dos locais de origem dos participantes, um grande festival de alimentos e cultura.

 

Satiagraha significa algo como a “firmeza da verdade”,

Swaraj, algo como “auto-governo”,

Swadesh, uma espécie de economia local solidária,

São os três eixos do Sarvodaya, o “bem-estar de todos”.

Esses conceitos, criados por Gandhi, dão o tom do trabalho desenvolvido na Navdanya. Gandhi acreditava que seria possível ter uma Índia que assegurasse o Sarvodaya por meio de vilas rurais onde esses três eixos fossem implementados.

 

Nos três dias seguintes aconteceu o Congresso Internacional de Biodiversidade no Instituto Nacional de pesquisa florestal Indira Gandhi situado em Dehradum, capital do estado de Uttarakand. O prédio, maior que o próprio Palácio de Buckingham, foi construído na década de 1920 e é uma das muitas heranças deixadas pelos britânicos em Dehradun. Era o local onde a maior parte dos guardas florestais indianos era treinada. Com um pé direito alto, torres e pátios internos, o edifício é imponente e muito bonito.

“Da floresta, aprendemos a democracia”, diz Vandana Shiva, em sua fala de abertura do Congresso, “há lugar para o menor dos insetos e a maior das árvores”. Foi inevitável pensar que se a floresta é uma inspiração para a democracia, em um país com a Amazônia deveria haver uma democracia muito mais robusta, exuberante e florescente…

Cinco brasileiros do grupo apresentaram trabalhos no Congresso. Um pôster falando sobre Agrofloresta sucessional biodiversa, Agricultura sintrópica e o trabalho desenvolvido na Fazenda São Luiz há 21 anos foi apresentado e ganhou um prêmio; outro pôster falava sobre a pedagogia dos mutirões agroflorestais na construção do conhecimento agroflorestal e todo o trabalho desenvolvido pelo Mutirão Agroflorestal. O Congresso mesclou os mais diversos e múltiplos temas ligados à Biodiversidade.

Alguns pensamentos do Congresso:

  • Construção de uma civilização baseada na Biodiversidade e na visão de mundo
  • Direitos da natureza e direitos humanos, nós somos UM
  • Proteção da Biodiversidade soluciona mudanças climáticas, doenças e fome
  • Este Congresso não é de apresentação de papers, é um Congresso de mudança e compromisso com a mudança, cada um de nós é agente da mudança para a conservação da Biodiversidade
  • Lei do retorno – reciclagem, devolver à terra – tem muitos nomes, mas está sob o signo da Agroecologia
  • Cocriação de conhecimento e sinergias – reciclagem, resiliência, tradição cultural, economia circular e solidária
  • Oikos é o núcleo da Economia e Ecologia, um maneja a casa e outro cuida da casa – deveriam andar juntos
  • “Message in a bottle” (The Police) – “Message from the bottom”…
  • Reflexões sobre visões de mundo: Sistêmica, Mecanicista e Orgânica
  • Importância de reformular a Educação baseada na visão de mundo sistêmica e orgânica
  • Biodiversidade: Segurança social, segurança alimentar, segurança da água, segurança econômica….
  • Mudança do Ego para o Eco

Na sequência, nos dias 07 e 08/10, aconteceu na Navdania um Encontro da Rede de Agricultura regenerativa (Regeneration International) com a presença de 38 participantes de 17 países da Europa, Estados Unidos, África, Índia e nós, do Brasil. Neste evento foram conversadas estratégias para a atuação e ampliação da Rede de Agricultura regenerativa. Os participantes apresentaram suas experiências em diversos locais do mundo e foi apresentado, em primeira mão, o documentário que está em processo de finalização dirigido e produzido por Camila Beckett, “Seeds of Vandana Shiva” que conta a vida da Vandana interligada a eventos e acontecimentos de ativismo ambiental e feminista no mundo.

Depois deste evento, algumas pessoas foram embora, outras chegaram, e formou-se um novo grupo para sair para uma jornada no norte de Uttarakhand, perto da fronteira com o Tibet, com o objetivo de conhecer estratégias de conservação de agrobiodiversidade das comunidades, a Jornada pelas sementes. Foram sete dias visitando as comunidades para ver como os agricultores, na verdade as agricultoras, protegem suas sementes, preservam as variedades tradicionais de plantas e mantêm suas técnicas de manejo e de cultivo. É um teste de fé andar pelas ribanceiras dos Himalaias. Perguntei sobre o risco de andarmos naquelas estradas e o indiano me respondeu: “Você deve pensar positivo e nada vai acontecer”. É muita fé! Também, lugar de muitos templos e as nascentes do sagrado rio Ganga (Ganges), é lugar de força espiritual forte!

As vilas multicoloridas são cercadas pelos infinitos terraços onde se cultivam os grãos. E aí, no meio desses paredões de terraços, se avista, de vez em quando, uma mancha coloridíssima: uma mulher agricultora! E lá as mulheres fazem tudo! Todo o trabalho bruto e o fino é feito pelas mulheres.

“Na vila Sheldova, além da conversa com as mulheres agricultoras, houve uma exposição de sementes, uma sessão de perguntas e respostas traduzidas, uma cantoria e muita emoção. No nosso grupo, havia muitas mulheres e as agricultoras de Sheldova gostaram muito do encontro entre mulheres. A despeito da dificuldade de comunicação verbal – a maioria das agricultoras fala só garhwali – foi possível entender que tudo se equilibra nessas mulheres cheias de cor.

Garhwali é um dos seis idiomas falados no estado de Uttarakhand, ao lado do hindi, do sânscrito, do kumaoni, do jaunsari e do urdu. O Garhwali é falado por 2,2 milhões de pessoas na Índia. Possui diversos dialetos locais e é uma língua exclusivamente oral. Só isso já dá uma dimensão do desafio que as coisas mais simples podem representar na Índia. Estima-se que 400 línguas são faladas no país e muitas delas são o único idioma de milhões de pessoas.

A parada seguinte da nossa jornada, no dia seguinte, foi na vila de Jagoth. Ali também as mulheres foram as donas da festa e são as que fazem todo o trabalho. Fomos convidados para um festival do alimento e o que se seguiu foi, de fato, um gigantesco festival de comida. Acompanhamos a confecção dos pratos com folhas, a pilagem do arroz, a preparação de um conjunto memorável de alimentos e, por fim, comemos muito bem! Depois das explicações sobre como se alternam os cultivos nos terraços, veio a pergunta óbvia: e as mudanças climáticas? Assim, descobrimos que montanhas que antes ficavam cobertas de neve, permanecem verdes durante todo o inverno e que vilas que atravessavam janeiro e fevereiro com um metro de neve, tem apenas uma pequena nevasca por inverno atualmente” (texto extraído em parte de relato de minha companheira de jornada Nurit Bensusan, correspondente do ISA nesta jornada).

Nos últimos dias visitamos uma cooperativa de mulheres tecelãs que produzem os fios de lã e algodão e confeccionam lindos tecidos e echarpes em tear e rocas (símbolo da resistência e independência indiana), e fomos a uma escola democrática que funciona sem recursos do governo, na raça e voluntariado dos professores. Propus realizarmos uma dança indígena brasileira com as crianças e foi muito emocionante. As crianças amaram aquele momento lúdico, com visitantes ilustres de tantos lugares do mundo! Vale lembrar que estas comunidades estão a aproximadamente 10 horas de carro (por estradas perigosíssimas) de Dehradun, ou seja, em grande isolamento. Foram momentos inesquecíveis pelos Himalaias. Provamos alimentos muito diferentes, dormimos na beira do rio Mandaikini e vivemos a cultura destas terras himalaias.

Finda nossa jornada, passamos dois dias em Rishikeshi, cidade sagrada à beira do Ganges, de grande energia. Entre Yoga e meditações, lojinhas e a Puja (cerimônia realizada diariamente ás margens do Ganges), descansamos dois dias.

Em seguida, parte da comitiva brasileira voou para Udaipur, cidade localizada no Rajastão, região central da Índia. Cidade linda com lagos, castelos com arquitetura ímpar. A cidade é toda pintada, paredes e muros tem pinturas artísticas com elefantes, cavalos, Ganeshas, Krishna, etc. Tivemos oportunidade de caminhar entre feiras, pegamos o festival da Durga (apelidado por nós de CarnaDurga) e vimos o espetáculo tradicional de bonecos, danças e equilibrismo. Nesta cidade encontramos Manish Jain, figura inspiradora e emblemática. Largou sua vida de executivo em grandes instituições internacionais para retornar à Índia e se voltar a uma educação baseada nos conhecimentos tradicionais e das comunidades. Manish criou o Shikshantar, espaço de aprendizagem e convivência coletiva, aberto aos jovens, e a Swaraji University, que conduz os jovens pelo caminho do desaprender e do trabalho em conexão às comunidades como processo de conhecimento. Na Swaraji o programa dura dois anos e os Khojis são os “seekers”, os que buscam o conhecimento. Cada Khoji (entre 16 a 28 anos) desenvolve seu próprio caminho de aprendizado (o que e como quer aprender) e desenvolve uma nova perspectiva e visão de mundo. Usam a natureza como escola, desenvolvem teatro para sentir e ver pela perspectiva do outro, trabalham o corpo como um sistema sofisticado de conhecimento (não só através do cérebro) e usam diferentes formas de percepção. O caminho do conhecimento segundo Gandhi é baseado nos quatro Hs: Head, Heart, Hands e Home e a Swaraji se inspira muito nisso. Manish, junto à sua comunidade, desenvolveu a “Gift Culture” (cultura do presente, da doação) que trabalha relações e atitudes e faz a energia da doação (e do amor) circular. No dia que passamos na Swaraji Ecoversity (além de University), iniciamos o dia com uma meditação no nascer do sol, na sequencia realizamos um trabalho de fazer pequenos berços de pedras num morro muito degradado, na perspectiva de criar pequenos locais de acúmulo de água para gerar vida e restaurar. Depois fizemos adobe com os pés e mãos para construir um banco e, só depois de muito trabalho coletivo, fomos cozinhar nosso café da manhã juntos. Essa é a pedagogia do Mutirão e eu me senti em casa!! Aliás, Mutirão em Hindi é Shram Dam.
Namastê!
Inspirações indianas para nossos trabalhos brasileiros…

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